Considerações Sobre o Paradigma da Dádiva


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CONSIDERAÇÕES SOBRE O PARADIGMA DA DÁDIVA

Lívio Oliveira A. de Lima[1]

 

[1] Psicólogo, mestre em administração e especialista em Inovação e Difusão Tecnológica, e em Gestão Pública.

 

 

SUMÁRIO

  1. INTRODUÇÃO.   3
  2. O PARADIGMA DA RACIONALIDADE INSTRUMENTAL.   4
  3. O PARADIGMA SOCIALÍSTICO.   5
  4. O PARADIGMA DA DÁDIVA.   6
  5. CONSIDERAÇÕES FINAIS.   9
  6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.   10

 

1. INTRODUÇÃO

 

“Se encontro algum outro capaz de ver as coisas em sua unidade e sua multiplicidade esse é o homem a quem busco como a um Deus.”

Platão (Fedro)

 

 

Costa, (2004) trata o paradigma da dádiva como uma das maiores contribuições de Marcel Mauss, e esclarece que ele tem recebido nos últimos anos, na Europa e principalmente na França, a atenção de inúmeros intelectuais identificados com o Mouvement Anti-Utilitariste dans les Sciences Sociales – M.A.U.S.S. Chegando também ao Brasil, este movimento, tendo na dádiva seu fundamento, contrapõe-se ao paradigma individualista – que procura explicar a totalidade social a partir do indivíduo – assim como também se contrapõe ao paradigma holista que admite a sociedade como fundamento do comportamento individual.

O novo paradigma da dádiva, ou do dom, possui caráter relacional, superando as imagens do homo economicus, tanto quanto, a do homo sociologicus. Cria assim uma nova categoria, o homo donator. (CAILLÉ, apud Costa, 2004). Para este homem, o comportamento deixa de ser unicamente determinado por suas necessidades utilitaristas, bem como, também não é uma mera decorrência dos determinantes ideológicos sob cuja dominação encontra-se submetido o indivíduo. O autor define o dom, sob a ótica sociológica, como a prestação de serviços ou de bens sem garantia de retribuição, objetivando a criação, manutenção ou reconstituição de um vínculo social.


 

2. O PARADIGMA DA RACIONALIDADE INSTRUMENTAL

 

A Racionalidade Instrumental[2], como um paradigma dominante e privilegiado na atualidade, traz em sua essência a explicação do sistema de produção a partir das noções de interesse, racionalidade e utilidade. Em outras palavras, podemos dizer que este modelo defende que o indivíduo toma as suas decisões com base em uma lógica de otimização nos resultados. Assim, […] na medida em que cada um otimize seu interesse individual, os membros de uma sociedade produzem o máximo de bem estar coletivo. (GODBOUT, 1998 p. 65).

Ao esclarecer os aspectos vistos como positivos no modelo do homo oeconomicus, Godbout (1998) reconhece o importante papel desempenhado pelo interesse individual na produção de bens públicos. Além disso, ao defender os valores individuais, o mercado cria uma proteção à invasão que as inúmeras instâncias e autoridades sociais externas – e, portanto, não legítimas – tentam exercer sobre os indivíduos.

Outro aspecto, avaliado também como positivo no neoliberalismo, é o que Hirschman (apud GODBOUT, 1998) refere-se por exit: a facilidade de sair de uma relação não agradável em busca de outra. Liberdade essa que não impede de obtermos o que desejamos do outro sem qualquer envolvimento pessoal.

O que fundamenta essa liberdade, segundo Godbout (1998) é a liquidação imediata e permanente da dívida. Desta forma, cada troca no mundo mercantil é completa, equivalente, o que lhe caracteriza como pontual, sem futuro, destituída de obrigação. O autor conclui suas considerações, em torno dos aspectos positivos do modelo do homo oeconomicus, com a afirmação de que mesmo implicando também a exploração, a injustiça e a exclusão, frequentemente ainda optamos por esse modelo a ter que renunciar nossa autonomia sobre as nossas próprias escolhas.

Godbout (1998) considera que, não obstante o reconhecimento de aspectos positivos do neoliberalismo, há também – como não poderia deixar de ser – o contraponto, o outro lado da moeda. A modernidade nos traz todas as liberdades, exceto a de não contribuirmos com o crescimento do PIB. Assim, se por um lado ganhamos em autonomia, nos libertando dos vínculos sociais, por outro criamos uma forte dependência de nossos próprios bens, da necessidade de produzir sem possibilidade de desaceleração. Inverte-se assim a relação entre meio e fim: A produção assume um valor supremo e a nossa vida, ou nossas preferências, antes finalidades, passam a estar a serviço do crescimento.

Por que isso é possível? O que leva à contaminação dos fins pelos meios? É o que nos explica Godbout (1998) ao fazer a crítica ao modelo da racionalidade instrumental por estar ele baseado na distinção fim-meio. Neste modelo, todas as nossas ações (meios) são elaboradas com a finalidade de atingirmos o desenvolvimento, a felicidade. O autor nos lembra que a sabedoria da humanidade sempre nos alertou com a seguinte questão: Para não alcançar a felicidade, o método infalível consiste em procurá-la incessantemente. Ora, isso é o que faz incansavelmente o homo oeconomicus.

O equívoco da racionalidade instrumental encontra-se no fato de que não há como se distinguir isoladamente o meio do fim, eles são permeáveis, interagentes. Qualquer modelo ou sistema que vise explicar ou normatizar a ação humana partindo desta distinção entre meio e fim estará fadado ao perecimento. As emoções, os sentimentos, as intenções e o resultado de nossas próprias ações precedentes provocarão uma incessante influência recíproca entre meios e fins. (GODBOUT, 1998).

 

[2] Segundo Godbout a expressão “Racionalidade Instrumental”, nas ciências humanas, é também designada por: neoliberalismo, teoria das escolhas racionais, individualismo metodológico, utilitarismo, homo oeconomicus e teoria econômica neoclássica.

 

3. O PARADIGMA SOCIALÍSTICO

 

Na tentativa de apresentar soluções aos problemas apresentados pelo modelo da racionalidade instrumental, sociólogos e antropólogos propõem o paradigma socialístico como alternativa, representando o conjunto de teorias que focalizam os interesses sociais e não individuais. Um dos importantes teóricos nesta área foi Etzioni (apud GODBOUT, 1998) ao reintroduzir a dimensão moral na lógica da explicação das relações sociais, sendo esta dimensão que nos afasta da racionalidade instrumental. Acontece, porém que a lógica do pensamento de Etzioni – e de todos os que assimilam o paradigma socialístico – é a de que a moral encontra-se afastada do prazer.

A vinculação do prazer ao utilitarismo, e da moral ao senso do dever é exatamente o que vem fragilizar o modelo socioeconômico. Embora Etzioni (apud GODBOUT, 1998) não veja o senso do dever como uma obrigação externa, e trate-o como normas interiorizadas, o que se passa aos críticos – e a todos os identificados com o paradigma dominante – é a idéia da necessidade de conformação e obediência a regras, o que fere a idéia de liberdade, levando-nos de volta ao paradigma dominante da racionalidade instrumental.

Para Caillé (apud Costa, 2004), o reducionismo e a unidimensionalidade caracterizam tanto o individualismo – que reduz tudo ao interesse – quanto o socialismo, que tudo reduz a uma forma ou outra de obrigação.

 

 

4. O PARADIGMA DA DÁDIVA

 

O paradigma da dádiva surge assim como síntese da perspectiva dialética empreendida na análise da relação entre a força dos interesses e efetividade da obrigação, a partir do pensamento de Mauss (Teoria pluridimensional e paradoxal da ação) contido em seu Ensaio sobre a Dádiva. De acordo com essa teoria, a ação é – em um só tempo – interessada e desinteressada.

A ação social encontra-se assim balizada por quatro motivações básicas: O interesse pessoal e o interesse pelos outros; bem como, a força da obrigação e o impulso da liberdade. (CAILLÉ, apud Costa, 2004).

Surge daí, segundo Godbout (1998) a necessidade de pensarmos sobre o móvel da dádiva. Pois ao nos limitarmos nos dois paradigmas oponentes, se por um lado fizermos dádivas em função de nossos interesses, para recebermos, estaremos raciocinando com a lógica do paradigma dominante. Por oposição, se a motivação para a dádiva não é da satisfação dos interesses próprios significa que fomos socializados, interiorizamos normas.

Godbout (1998) então conclui que nenhum, nem outro dos paradigmas até então apresentados, explicam a dádiva.

Na dádiva não há aquilo que se constitui na essência do modelo mercantil, a equivalência nas relações de troca, pois que ela – a dádiva – possui um fim em si mesma no modelo do dom, enquanto que essa mesma dádiva, na lógica mercantil, caracteriza-se como um meio para a esperada retribuição. Não obstante, mesmo não sendo o fim, no sistema do dom, a retribuição é frequentemente maior do que a dádiva, demonstrando uma intensificação na complexidade dessa relação, se comparada ao raciocínio linear da racionalidade instrumental. (GODBOUT, 1998).

A explicação para que o sistema do dom prescinda da retribuição e, portanto, considere a dádiva como um fim em si mesma é, segundo Godbout (1998) o fato de encontrar-se centrado na dívida, ao contrário do modelo mercantil que parte da lógica da liquidação desta dívida. Os sistemas mercantil e do dom são, portanto, diametralmente opostos quanto à manutenção da dívida.

Não poderemos vincular, no entanto, a existência da dívida no sistema do dom, com aquilo que caracteriza o paradigma socialístico: a obrigatoriedade da dádiva como regra social interiorizada. No dom os atores valorizam a dádiva por prazer, e só assim ela atinge seu real sentido. As regras morais da sociedade passam a ter, no dom, importância secundária, pois a motivação é implícita e não interiorizada. A dádiva é a expressão da consciência do vínculo interpessoal. (GODBOUT, 1998).

Mauss (apud GODBOUT, 1998) afirma que tudo isso leva, frequentemente, à negação da importância do próprio dom pelo doador, e essa atitude, segundo GODBOUT é uma tentativa do doador em diminuir a obrigação da retribuição, tornando-a incerta. Desta forma, caso aquele que recebe, retribua estará também praticando uma verdadeira dádiva. Essa é a compreensão de Lefort (apud GODBOUT, 1998) “não fazemos dons para sermos retribuídos, mas para que o outro faça seu dom”.

Desta forma, reafirma Godbout (1998) que no dom há uma tendência natural em se evitar a relação contratual, seja aquela motivada por interesses mercantis ou sociais, assim como também se mantém distanciado da regra do dever, pois que frequentemente, este se encontra destituído de “sentimentos”.

Existe, portanto, liberdade no dom, além de uma relação bastante diferente com a “dimensão moral”, mencionada por Etzioni. No entanto, esse tipo de liberdade não é semelhante ao tipo de liberdade do mercado. A liberdade que constatamos aqui não se concretiza pela liquidação da dívida, nem consiste no fato de que, para o ator, a saída da relação seja mais fácil; pelo contrário, ela se situa no interior do vínculo social e consiste em tornar mais livre o próprio vínculo através da multiplicação dos rituais que, no âmbito da relação, visam diminuir o peso da obrigação para o outro. (GODBOUT, 1998).

Assim, liberdade no dom é essencialmente diferente da liberdade a que se refere a racionalidade instrumental. Enquanto que para o mercado aumentamos nossa liberdade com a diminuição da liberdade do outro, no dom, ao contrário, nos voltamos a criar condições para se intensificar a liberdade do outro, pois que nela se encontra a condição para se atribuir valor ao seu gesto. Quanto mais livre para agir, mais valorizada será a dádiva.

Há então, por diversas razões, um distanciamento do dom em relação aos dois paradigmas dominantes:

A não equivalência, a espontaneidade, a dívida, a incerteza procurada no âmago do vínculo opõem-se à teoria das escolhas racionais e ao contrato. Por sua vez, o prazer do gesto, a liberdade, opõem-se à moral do dever e às normas interiorizadas do modelo holístico. (GODBOUT, 1998).

Compreendendo o distanciamento do dom aos dois paradigmas apresentados, a questão agora lançada por Godbout (1998) é a da possibilidade de explicação da ação humana por outro princípio que não seja o interesse, nem a interiorização de normas. Após a referência a pesquisas com animais e com crianças, Godbout apresenta o dom como este novo postulado da ação humana, como uma tendência natural ou uma “pulsão de dom” semelhante ao natural impulso para receber.

Assim como na física nos questionamos o que impede o movimento e não o que leva os corpos a se moverem, ao considerarmos o dom como um postulado, uma primeira questão para entendê-lo é o que nos impede a dar, e não o que nos leva a dar. Godbout (1998) afirma que a principal razão é a ameaça contra a identidade. O autor acrescenta que outra importante consideração para o entendimento do dom como um postulado é a necessidade de se compreender sua independência em relação à reciprocidade, que embora importante não constitui sua essência, até porque a idéia da reciprocidade facilmente nos leva ao paradigma dominante, pelo princípio da equivalência.

Nos diversos modelos de dom, pautados no Paradigma da Dádiva, a referência à (manutenção da) dívida encontra-se sempre presente. Godbout (1998) afirma que: A vontade de não ter (liquidar) dívidas é, em um sistema de dom, vontade de dominar o outro: um atentado contra sua identidade. Em tais casos o direito surge, para o autor, como a situação mais favorável e nos é dado o exemplo do voluntariado: Ao não poderem retribuir, e para não terem suas identidades ameaçadas, os beneficiários do voluntariado voltam-se para o direito, na relação com os voluntários, e a consideram como uma ação de extensão do Estado.

A passagem para o sistema do direito é assim uma proteção contra a destituição da identidade, pois se a ação é do Estado é um dever e não uma dádiva. O dever, enquanto retribuição não ameaça a identidade. Como nos lembra Mauss (apud, Godbout, 1998): Aceitar alguma coisa de alguém é aceitar alguma coisa de sua essência espiritual, de sua alma; a conservação dessa coisa seria perigosa e mortal […].

 

 

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Compreendemos portanto o Paradigma da Dádiva como uma das grandes contribuições na atualidade ao entendimento do móvel da ação humana, cuja lógica encontra-se muito além dos limites tradicionais do utilitarismo ou neoliberalismo. Muito provavelmente, é por essa mesma razão que tal paradigma encontra tanta simpatia entre inúmeros teóricos europeus e no Brasil.

Supera-se assim a visão focada no indivíduo para explicar a totalidade social, tanto quanto a idéia da sociedade como fundamento do comportamento individual. As imagens do homo economicus, tanto quanto, a do homo sociologicus são superadas com o novo paradigma da dádiva, ou do dom, surgindo a nova categoria, o homo donator.


6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

 

COSTA, B. Morem. Capital Social e Organização do Terceiro Setor em Porto Alegre. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Sociologia – UFRS. Porto Alegre / RS, 2004.

 

GODBOUT, Jacques. Homo Donator Versus Homo Oeconomicus. La Revue du M.A.U.S.S. semestrielle. “Plus réel que le réel, le symbolisme”, nº 12, 2º semestre de 1998 [col. Recherches]. Paris: Ed. La Découverte/M.A.U.S.S., p. 261-282;

 

MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia – Com uma introdução à obra de Marcel Mauss de Claude Lévi-Strauss. Vol. II. Tradução de Mauro W. B. de Almeida. E.P.U. / EDUSP. São Paulo/SP, 1994.


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